Chevette Envemo/Silpo: O Único
Por Marco Antônio Oliveira e Juvenal Jorge, via Autoentusiastas Classic (publicado em 06/02/2013)
Existem alguns carros nos quais estranhamente nos sentimos em casa. Não sei explicar o como nem por quê, mas é algo que pode-se provar facilmente por observação do comportamento das pessoas em qualquer encontro de carro antigo. Todo mundo pode até gostar de tudo que vê, mas em alguns carros param e suspiram longamente, como se algo lhes prendesse ali e os remetesse a um passado distante, ou mesmo, diriam os espíritas, a outras vidas.
Eu me sinto assim a respeito de Chevettes. Já falamos muito deles aqui (listo alguns links ao fim do post para os mais curiosos), e eu particularmente falei demais até, acho, e, portanto reluto a voltar ao assunto. Mesmo porque vendi o último de meus sete Chevettes em 2006, e tenho procurado ficar longe de vícios autodestrutivos desde então.
Um visual verdadeiramente cativante |
Mas eis que me vem o amigo Juvenal Jorge pedindo companhia para ir ver o carro que é o tema deste post: O Chevette Envemo com cabeçote Silpo. Confesso que relutei, mas acabei concordando, ainda que fosse para não deixar o amigo sozinho.
Afinal de contas, sabia que a Silpo do italiano radicado no Brasil, Silvano Pozzi, tinha criado um cabeçote DOHC (double overhead camshaft) para o Chevette ao redor de 1979/1980, mas nunca até então tinha visto um Chevette com o tal motor. E este era lindo, com o body kit da Envemo, e num belíssimo azul metálico brilhante. Com dois carburadores Weber verticais de corpo duplo e aquele cabeçote de duplo comando, com as exóticas palavras “Silpo” e “Bi-albero” (da expressão italiana “bi-albero di came a testa”, duplo comando de válvulas no cabeçote), parecia o Santo Graal para um chevetteiro. É um carro único e interessantíssimo, no mínimo.
Jeito instigante |
Mas, com o tempo, a magia meio que definhou. Com o tempo, comecei a pensar que aquilo não podia dar certo. Feito numa época em que nossa gasolina raramente permitia taxas de compressão maiores que 8:1, e sendo algo que fora desenvolvido com poucos recursos, tempo de desenvolvimento e exposição no uso, prometia ser algo impossível de dar certo. Provavelmente nunca funcionaria direito, e nunca daria mais que os 82 cv de um Chevette 1.6/S a álcool original de fábrica, com sua taxa de compressão de 12,5:1 e carburador de duplo corpo. Interessante como curiosidade, mas muito barulho por nada, pensei. Apesar de o carro continuar à venda desde aquela época, tirei-o da cabeça e nunca mais pensei nele. Até o convite do JJ.
Mas, como não poderia deixar de ser, eu estava errado, de novo. Não chegamos a dirigir o carrinho, mas fomos com o dono até o lugar onde tiramos as fotos, e pudemos fuçar o carro todo. O Márcio, da loja Paulitalia Classics, foi piloto de competição, e na pequena volta que demos com ele, junto com a experiência que tenho com Chevettes, foi extremamente reveladora. Mas antes de contar como o carrinho se comporta, vou tentar contar o que se sabe, ou pelo menos o que pudemos apurar, desse carro e motor.
O cabeçote Silpo Bialbero
Muito pouco se sabe sobre este cabeçote. Eu realmente fico pasmo que um preparador de São Paulo nos anos 70 tenha sido capaz de fazer algo tão interessante e tecnicamente complicado, com recursos obviamente parcos. Mas parece que o italiano Silvano Pozzi era uma daquelas pessoas que não se preocupavam em se planejar demais; apenas fazia, e para uma pessoa assim, nada é impossível.
O Márcio, dono do carro, nos diz que cinco cabeçotes foram produzidos. Um foi instalado em um Chevette Hatch, que foi para o sul e lá sofreu um acidente de perda total, seu motor desaparecendo. O segundo é o do carro que conhecemos. Outro motor foi mandado completo para a Envemo, e seu paradeiro é, agora, também desconhecido. Dos outros dois motores, não se sabe absolutamente nada. O que faz este Chevette azul algo filho único de mãe solteira, e já falecida (Silvano Pozzi faleceu em 8/08/07).
De qualquer ângulo, um visual chamativo |
Datas: o ano de fabricação deste carro é 1974. O Márcio nos diz que este Chevette foi mostrado no Salão do Automóvel de São Paulo em 1974, mas era então branco. Nada consta, porém, sobre um Chevette Envemo nas reportagens da época que consegui achar, fosse ele branco, azul, ou qualquer outra cor. No salão de 1976, porém, um Chevette branco foi exposto sim no estande da Envemo, mas era um semi-conversível cópia do Kadett Aero europeu (saiba mais aqui). Pode ser uma confusão de memória de quem contou a história, ou o carro simplesmente passou despercebido pelas publicações especializadas da época.
A tampa de válvulas aletada ajuda na refrigeração do óleo |
Já sobre o cabeçote Silpo Bi-albero, um dos poucos registros impressos de seu aparecimento é a nota abaixo, publicada na seção 'Painel' da revista Quatro Rodas, sob o título "Uma opção para dar mais potência ao Chevette”. A edição é de agosto de 1979, o que nos faz acreditar que tenha sido desenvolvido durante este ano. Se o carro foi mesmo mostrado no salão, provavelmente ainda não tinha o cabeçote da Silpo. A Envemo, desde o lançamento do Chevette, desenvolvera e vendera, além de modificações de carroceria, também modificações de motor, o mais famoso e comum sendo o coletor de admissão para dois carburadores de corpo simples Solex 40, de Opala, hoje cobiçado pelos chevetteiros mais xiitas (aqueles que gostam de Chevette com motor de Chevette) como este colunista.
Mas não ficava só nisso. A Envemo freqüentemente aumentava a cilindrada para 1.600 cm³, elevava a taxa de compressão obrigando o uso da gasolina azul de então, e assim por diante. Provavelmente, suponho, se este carro foi exposto no salão de 1974 ou 1976, tinha motor Envemo 1600, e depois recebeu o cabeçote do Silvano Pozzi, em algum lugar no início dos anos 1980. Com este cabeçote, o carro aparece na capa da revista Oficina Mecânica, em 1987.
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Fac-simile da matéria na revista Quatro Rodas |
Olhando com cuidado o motor, ao vivo, uma coisa salta aos olhos logo de cara. As velas de ignição não estão na localização tradicional de um motor DOHC, ao centro do cabeçote, entre os comandos de válvulas. Estão na lateral direita, perto dos dutos de escapamento, numa posição que parece exatamente igual a do Chevette normal, como se pode ver abaixo. O coletor de escapamento, inclusive, é exatamente o mesmo do Chevette normal!
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À direita, um cabeçote normal, à esquerda, um Silpo |
O por quê disto, não consigo entender, porque uma das grandes vantagens de se ter um cabeçote DOHC é a vela central, que em conjunto com a câmara de combustão hemisférica (válvulas de admissão e escapamento opostas), reduz o risco de detonação por levar a uma queima da mistura ar-combustível mais homogênea. Algumas vezes, ao aumentar-se as duas válvulas de um DOHC, impossibilitando a vela central, usam-se até duas velas, dos dois lados das válvulas, para se manter a simetria. Daí, inclusive, que vem a maior eficiência das quatro válvulas por cilindro que, a par da maior área de passagem, preenchem melhor o espaço do diâmetro do pistão, mas livram o lugar da vela bem ao centro da câmara.
Mas acredito, olhando o motor e lendo o pouco que se falou dele durante os anos, que a idéia aqui fosse apenas melhorar os dutos (em área transversal e desenho), e também o diâmetro das válvulas, sem maiores considerações teóricas sobre a eficiência da combustão. De novo, bate com o que se entende de Pozzi olhando seus feitos: pouco planejamento, mas muita vontade e capacidade de fazer. Um artesão à moda antiga, mas não um engenheiro.
Os cabos de vela indicam a localização lateral das velas de ignição |
O acionamento dos comandos é feito por correia dentada, como no Chevette, e esta conta com dois esticadores montados numa capa cromada metálica que serve de proteção para correia e polias, e é fixada ao motor. No lado da admissão, dois carburadores Weber de duplo corpo, com filtros de baixa restrição, garantem que não faltará alimentação. A Silpo era a assistência autorizada da Weber em São Paulo, como nos informa a plaquinha simpática montada no cinzeiro do carro. O resto do motor é normal do Chevette, apesar da cilindrada ter sido aumentada para 1.600 cm³.
E isto é só o que sabemos sobre o Silpo Bialbero. Se alguém souber mais, por favor conte-nos!
Plaqueta afixada no cinzeiro indica "Assistência Weber" |
Como anda um carro único
O kit de carroceria da Envemo, somado às rodas Scorro “Cruz de Malta” de 13 polegadas, e a pintura azul brilhante, fazem deste Chevette um dos mais belos que existem. É um carro dos anos 1970, preparado, o que o torna ainda mais raro que um original de fábrica, mesmo antes de vermos seu motor único. Na traseira, freios a disco, segundo o dono um kit de época produzido pela retífica Retsam, de São Paulo.
Uma das mais belas rodas produzidas pela Scorro, a "Cruz de Malta" de 13 polegadas |
O interior é também, felizmente, quase perfeito para o período. O quase aqui fica por conta do volante novinho, que apesar de imitar a época, não engana ninguém. O carro implora por um volante Envemo de época, ou pelo menos uma imitação de volante de Puma dos anos 1970. Os bancos são tipo concha, mas são baixos, sem encosto de cabeça. Seguram muito bem todo o corpo, mas ainda assim tornam o interior mais espaçoso e arejado, coisa que foi perdida quando os bancos cresceram quase até o teto nos anos 1990.
O painel é totalmente alterado em relação a um Chevette normal, em madeira e com o topo almofadado em couro. O Márcio nos mostrou que a madeira cedeu em alguns lugares, mas disse que vai arrumar isto em breve, bem como instalar um rádio de época.
Bancos especiais para maior apoio lateral, mas sem encosto de cabeça |
A instrumentação é sensacional, de uma forma que não se vê mais: são nada menos que onze instrumentos analógicos, "reloginhos" que são maravilhosos em sua simplicidade, e que nos dão uma nostalgia danada do tempo em que tínhamos que nos manter informados sobre o por quê e o quando nossos carros iam nos deixar a pé. Neste Chevette alguns dos instrumentos em si já devem ter quebrado, por que são de marcas diferentes, mas pelo menos de aparência condizente.
Na frente do motorista, o tradicional velocímetro à esquerda e conta-giros à direita, da marca Heredia, com um relógio de menor diâmetro no meio. À esquerda desses está o vacuômetro Smiths em cima de um medidor de pressão de combustível sem marca. Na direita, mais seis instrumentos, três em cima, três embaixo, todos Horasa: quantidade de combustível no tanque, amperímetro, temperatura do óleo, pressão do óleo, voltímetro e finalmente temperatura da água de arrefecimento. Uma coisa linda realmente.
Excepcional quantidade de instrumentos |
Mas mais legal mesmo é como anda o carrinho. Sim, não é nenhum foguete, e continuo achando que não tem mais de 90 cv, apesar do dono estimar bem mais que isso. Mas o que interessa aqui não é o que ele faz, mas como em todo Chevette, COMO ele faz.
O motor sobe de giro solto, respirando em alta rotação de uma forma que nunca vi Chevette nenhum fazer. Pelo menos não sem um enorme turbocompressor para ajudá-lo. O carro respira solto, alegre, sem restrição. Uma delícia. Parece que realmente o objetivo de fazer o Chevette respirar melhor foi alcançado.
A carburação parece que precisa de algum ajuste em marcha-lenta, porque engasga um pouco quando o carro sai da inércia, mas quando os carburadores limpam as quatro gargantas logo em seguida, o motor puxa forte como um Alfa antigo, desde baixa rotação. De novo, uma coisa muito legal.
Elegância discreta |
O carrinho me fez ficar uma semana olhando anúncios de Chevette na internet novamente, e me deixou cheio de idéias sobre como um motor de Chevette mesmo, mais novo, com as melhoras de maior taxa e pistões mais leves depois de 1988, com dois Weber, um comando mais esperto e válvulas maiores, além de um bom balanceamento, não era capaz de fazer. Fiquei com uma vontade danada, na verdade, é de colocar um motor desses neste Chevette azul maravilhoso.
E o motor Silpo Bialbero? Este ficaria permanentemente em exposição bem no meio da minha sala, feito uma obra de arte. Parece que vício auto-destrutivo é algo realmente difícil de abandonar, afinal de contas...
MAO (Marco Antônio Oliveira)
Um de um – isso é que é raridade !
Por Juvenal Jorge
O grande spoiler se destaca na dianteira |
Andar em um carro antigo que já vimos e sobre o qual lemos diversas vezes é interessante. Sendo um Chevette, mais ainda, já que tive dois deles, tendo sido um 1978, o meu primeiro carro, lá em 1984. Está quase tudo gravado na memória, seja visual, seja tátil.
Volante leve, pedal de freio não leve, suspensão um pouco chacoalhante, estabilidade ótima e divertido de brincar no molhado, desde que se tenha um espacinho nas esquinas para derrapar, mesmo que bem pouquinho. Se os pneus forem ruins ou bem gastos, como no meu primeiro, fácil rodar e cometer algo pouco educado ou inteligente.
À luz e imagem do que se fazia nos Opel Kadett C na Europa |
Dez anos antes de quando eu comecei a aprender por mim mesmo que automóvel não era só transporte, esse belo Chevette azul foi fabricado, e Silvano Pozzi o modificou de forma interessante algum tempo depois. O carro estava no mercado desde o ano anterior, 1973, quando a GMB o lançou antes aqui do que na Europa, onde fora projetado. Um tempo de vanguarda absoluta da empresa de São Caetano do Sul.
Silvano Pozzi se informou sobre os Chevettes de duplo comando de válvulas que haviam sido lançados na Inglaterra, e fez o seu, mantendo as duas válvulas por cilindro e as velas na lateral do cabeçote, algo um pouco estranho em um cabeçote para duas árvores de comando, que normalmente as têm entre eles, na parte mais alta da câmara. Usou os equipamentos de sua empresa, que entre outras atividades, era um posto de assistência técnica autorizada da Weber, fabricante de carburadores, e cujo modelo de corpo duplo de borboleta com 40 mm de diâmetro equipa duplamente esse carro. Ou seja, quatro aberturas de 40 mm, dando um para cada cilindro.
Os dois carburadores Weber 40 IDA e os filtros de ar de baixa restrição |
Todo esse ar, ao ser misturado com a gasolina, deixa o carro um pouco rouco em baixa rotação, com excesso de gasolina, mas isso não é problema, já que uma leve cutucada de acelerador sobe o giro e desengasga as gargantas dos Weber, fazendo o motor funcionar de forma mais suave até que os originais com pouca carburação. E forte, muito mais forte que qualquer Chevette que tenhamos andado com motor original, descontados os Chepalas, claro. Ou os turbos.
Ambiente interno bem-cuidado, para conforto e esportividade |
Anda bem, claro, com muito mais potência do que o normal nesses carros, as trocas de marcha habituais, fáceis, simples, diretamente acima da caixa de câmbio, privilégio que os carros de motor transversal não tem. Se alguém sabe a potência exata, não divulgou como deveria, e ficamos na suposição. Deve ser algo a mais que um 1.6/S, no mínimo.
Em estilo, poucas alterações podem ser mais felizes nesse carro já antigo. As caixas de roda alargadas pelas abas são totalmente rali, bem como o spoiler dianteiro. A cor é bonita, e a pintura está em muito bom estado, denotando cuidados constantes.
Tipo do carro que incita dirigi-lo |
O painel de instrumentos é um caso à parte, que eu não esperava, já que nunca havia prestado muita atenção nos detalhes. Totalmente particular desse carro, tem, além dos habituais velocímetro, conta-grios, relógio e nível de combustível, a adição de vacuômetro, temperatura da água de arrefecimento, pressão de gasolina, pressão de óleo, temperatura de óleo, amperímetro e voltímetro. Um espetáculo, impensável na produção automobilística atual, onde vale mais um rádio cheio de siglas e luzes do que saber a pressão do óleo, instrumento fundamental para fazer um motor durar a vida toda e mais um pouco. Fico com um radinho simples e o manômetro de óleo, obrigado.
Os bancos tem capas diferentes do original também, em um courvin em ótimo estado e com desenho particular, com tiras espumadas mais altas que a superfície. Ficou bonito e aparenta mais conforto.
Como é um carro único, 1/1, não encontra facilmente um dono, e por isso está a venda na Paulitália Classics, facilmente contatada pelo site deles.
Para quem gosta e quer ter uma raridade sem muitas crises de manutenção, uma boa escolha.
JJ (Juvenal Jorge)
Via Autoentusiastas Classic (CHEVETTE ENVEMO/SILPO: O ÚNICO - AUTOentusiastas Classic (2008-2014))
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